14 de out. de 2010

Entardecer

Criatura enferrujada

Eu sou o entardecer

Guarde seus braços 

Eu sou o entardecer

O frio já vem

E mais tarde do que desejas

Eu sou o entardecer


Cultivas o tempo dentre seus dedos e em suas cicatrizes empoeiradas sem se importar. O frio virá - você previu isso - mas virá tarde, até lá terá de conversar com a paciência. Diálogo esse que resultará em desordem, sua frieza irá testá-la e logo o tédio virá buscá-la e levá-la para longe de ti, criatura enferrujada. Mesmo que não se importe sei o quanto te incomoda ser repouso para outras vidas, ser um peso de suporte ou escoro para desgraças que não lhe pertencem. Não se incomoda mais, apenas fita o chão - a variação da sombra e seu passeio de um lado à outro. Já cansou de contar as vezes que se importou, não? Já cansou de contar as vezes que espantou os corvos que insistem em pousar sobre seus ombros dourados e desgastos pela chuva, não? Já cansou de tentar se levantar para dar uma volta, não? Mesmo que tenhas cansado eu sei que os números lhe vêm à mente intrusos e penetras. Foras feito para isso e sei que não me olhas nos olhos por pela maldição que carregas, criatura enferrujada. Vim apenas por obrigação, mandaram-me para fazer o que previstes a longas eras. Eu sou o entardecer. Eu duro a eternidade. Entrarás no desespero antes que eu vá e o frio chegue, mas disso sabes também. Aguardar é sua sina, sua única saída e sua maior desgraça... Isso passará de forma lenta e árida. Você não ficará muito diferente após o entardecer, sua essência será a mesma. Sua garganta ficará mais seca e suas pernas mais fracas - após o entardecer.
Criatura enferrujada, serei eu alguém mau? 
Trazendo-lhe notícias e pesares de outros tempos. Trazendo ventos de outros lugares e suspiros de outras horas. Vim para compartilhar os últimos tempos, antes do frio. Sei que não se importa com isso, tampouco se importa com o todo, criatura enferrujada. Está a muitas eras sentada a escrever na areia suas dores e seus desejos, os corvos as lêem e cantam em desprezo e vós retribui com o silêncio. Pensar não é mais algo doce e sublime, seus sonhos já foram distorcidos pela angustia e seus pesadelos se dissiparam como um mal-estar passageiro. Já fizestes o que tinha de ser feito e isso não lhe tomou o tempo necessário, agora és inútil e estamos apenas no entardecer. 
Tantos se recusam a viver, tantos se recusam a ver. Tantos se recusam a morrer, tantos se recusam a ouvir. Tantos se recusam a dormir, tantos se recusam a sentir. Demasia não lhe atribui idéia alguma, não? 
Pegas uma pedra e arremessa na água, contas as ondas e as aguarda cessar por completo. Pegas uma pedra, mas as ondas são iguais. Pegas uma pedra e não se importa, os corvos cantam e todos morrem da mesma maneira. Pegas uma pedra e se inutiliza, transforma-a em areia, isso demora mas não tanto quanto gostaria, não? A areia lhe contara todos os segredos que tinhas para saber, a água lhe tirou todas as pedras que eram seu passa-tempo. 
A velha mentira já lhe tirara tudo, não? Veio e lhe tomou o que eras seu, não? Arrancou seus olhos de vidro para que não precisasse ver o que não queria. Desenhou um sorriso, grande e claro, em sua face de latão para que estivesse sempre alegre. Tirou os parafusos e porcas de seu tornozelo dizendo que não precisaria caminhar mais para tão longe. Condição. Agora terás de suportar o entardecer sentado e imóvel, podendo apenas caminhar alguns poucos passos, mas desististes disso, não? 
No começo gritastes em protesto, estou certo? Suas entranhas produzindo ruídos e sons para aliviar sua tristeza sem lágrimas. Não foras feito para isso, não estou certo? O novo lhe tirou partes importantes. Agora seu interior range em desarmonia. Antes você suspirava, não? Desabafava e cuspia ruídos incomodado. Agora que desististes de tentar está todo enferrujado e sons aleatórios soluçam em sua garganta. Tentastes controlá-los, não? Mas isso já faz muito tempo, criatura enferrujada. Agora a desgraça te abraça e leva parte de sua pintura, ela te acaricia como uma mãe cuida de seu filho predileto. Este é todo o carinho que terás no entardecer, após isso vem o frio.
O sol mergulha no mar derretendo-se no horizonte, separando-se em milhares de fagulhas vivas, dançarinas. Tudo é um só, dourado. Cenário, areia, pedras e você, criatura enferrujada, tudo um só. Eu sou o entardecer, vou mantê-lo aqui... Até que o frio chegue. Ele vai chegar, você sabe, mas irá demorar um pouco e, até lá, terás de se contentar com a areia em suas juntas e o gosto amargo da desgraça e do tédio.

Um comentário:

Mayra disse...

Bem, eu vejo uma beleza melancólica - talvez - no entardecer... mas é como se fosse tb uma paz silenciosa. E às vezes, a vida tende ao tédio.